quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A recusa da realidade

Entre 1892 e 1894, houve em França um verdadeiro surto de anarco-terrorismo. Um dos mais famosos casos foi o de Émile Henry. Em seu julgamento, pouco antes de explicar seus atos, o jovem anarquista se levantou, virou-se para os jurados e disse: «Não é uma defesa que vos quero apresentar. Não tento de forma alguma furtar-me às represálias da sociedade que ataquei. De resto, só aceito um único tribunal - eu próprio; e o veredicto de qualquer outro me é indiferente».

Imaginem o assombro e a perplexidade pelos quais foram acometidos os jurados. A maior parte deve ter se ressentido do fato de o réu se mostrar tão convicto das próprias ações. O problema é que, digamos, uma dessas ações foi a explosão de um café em Paris. Menos de um mês depois, Émile foi condenado à morte e executado.

Não creio que a afirmação feita aos jurados seja, em si, moralmente repreensível. Pelo contrário. Trata-se de uma defesa da consciência individual. Porém, ela carrega também a recusa convicta da realidade. Por mais que nunca admitisse, o jovem e revoltado anarquista não queria senão fazer a coisa certa. Ele queria fazer o bem, ainda que, para ele, isto significasse matar burgueses e atacar a moral vigente.

A revolta de Émile Henry é uma revolta metafísica. Diz Camus que «o revoltado desafia mais do que nega». Ainda que se dissesse ateu, o fato é que Émile não suprimiu Deus, apenas quis falar-Lhe de igual para igual. Se os jurados se ressentiram de suas palavras, é certo que o ressentimento de Émile para com a realidade era muito maior. São rancores como esse que criaram os Robespierres.

No referido episódio, a recusa da realidade é patente. Ela o é bem menos nas situações banais de nosso cotidiano. A cada vez que ouvimos um «mas o que você quer que eu faça?», ou um «mas por que eu?» - não raro proferido por nós mesmos -, voilà, lá está nossa revolta por termos nosso desejo contrariado. Recusamo-nos a enxergar as conseqüências de nossos atos sobre outras pessoas. No entanto, gritamos e choramingamos quando, na situação inversa, temos que pagar pelo mal cometido por outrem.


Tenham todos um feliz natal.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Le vote suisse contre les minarets

Não deixem de ler, no blogue do Ivan Rioufol, seus comentários sobre o voto suíço contra os minaretes islâmicos. A Folha entrevistou o deputado Oskar Freysinger, autor da proposta (aqui). A entrevista dá a entender que o senhor Freysinger é um ultranacionalista xenófobo e radical. Eu não sei, talvez seja mesmo. Mas não custa lembrar que Bruxelas, a capital da União Européia, será, em vinte anos, majoritariamente muçulmana.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Sobre a objeção da muleta

Esta é, talvez, a mais comum. A religião é uma «muleta» para aqueles que não agüentam a verdade, a saber, que Deus não existe, nem o bem e o mal, e a vida não tem sentido. O religioso é covarde e fraquinho porque ele precisa acreditar que há algo além, do contrário se mataria. O cético-ateu, por outro lado, é capaz de reconhecer a falta de legitimidade da existência e sorrir. Enquanto a ausência de sentido da vida atinge o religioso de modo fulminante, o cético-ateu apenas mata-a no peito e a chuta para longe. Se estivessem em uma montanha russa que terminasse em um precipício, o religioso taparia os olhos com as mãos e, em desespero, tentaria se convencer de que o precipício não existe. Em contrapartida, o cético-ateu abriria os braços - em gesto que representa sua corajosa aceitação da existência tal qual ela é, sem sentido e sem valores - e, gargalhando, entoaria um «I have a lust for life!».

Não tenho muito que objetar à objeção da muleta. Mas me permito fazer duas considerações. Às vezes, diz-se que o uso da muleta é uma atitude covarde, pois significa escolher o caminho mais fácil. «Ah, seu covarde, você quer acreditar em Deus porque assim é mais fácil». Ao refletir sobre tal argumento, vem-me à mente a seguinte situação. Dois amigos entram em um restaurante, sentam-se e chamam o garçom. O primeiro pede salmão com alcaparras e o segundo pede um prato cheio de cocô. O que o primeiro responderia se o segundo lhe objetasse, enquanto mastiga aquela massa fétida, ter ele escolhido o caminho mais fácil? Acho que responderia algo do tipo: «sim, é verdade. Comer salmão é mais fácil. A propósito - e se virando para o garçom -, traga mais cocô que o meu amigo está faminto».

A segunda consideração é que, mesmo que se admita ser a religião uma muleta, existe alguém a viver sem qualquer tipo de muleta? Quer dizer, seria possível a alguém viver repetindo a si próprio, a todo instante, dia após dia, que a vida não tem nenhum sentido - ou, como diz o homem ridículo de Dostoievski, que «tudo tanto faz» - e fazê-lo sem a ajuda de entorpecentes, narcóticos, humanismos ateus e outros vícios? Acho que não.

sábado, 31 de outubro de 2009

Frases ranzinzas


«Eu também não acredito em uma moral universal. Isso é bobagem.»

(Da série Coisas engraçadas ditas a você por um estelionatário, pouco depois de você dizer a ele que o bem em si não existe e que a moral é relativa, e pouco antes de você descobrir que ele lhe roubou todas as suas economias)

Frases ranzinzas


«Querida, estou inteiramente de acordo com você. A propósito, venho dormindo com a sua irmã há mais de um ano.»

(Da série Coisas que o homem disse a sua namorada, psicanalista, logo após ela lhe dizer que o ser humano não é senão um feixe de impulsos sexuais, e que não cometer adultério seria, pois, uma traição à própria natureza humana)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Memórias de uma primavera parisiense

Enxerguei, no ralo da pia de meu banheiro, um bom exemplo do processo que me ocorria. Era um ralo normal e eu nunca prestara muita atenção em ralos até então. Mas algo parecia estar diferente. Após algumas semanas de uso da pia, o ralo começou a ser circundado por uma mancha negra de aspecto duvidoso. Chamar aquilo de mancha nos primeiros dias era um exagero, posto não fosse mais que uma linha negra fazendo um pedaço de seu contorno. Mas o que era linha virou mancha, uma espécie de negrume, sem dúvida algum tipo de fungo, adquirindo em partes uma tonalidade acinzentada. Mesmo o resto da pia não escapara ileso, e adquirira um amarelado muito curioso. Se eu tivesse que dizer, arriscaria que era a própria morte que tentava, vagarosamente, sair pelo ralo de meu banheiro.

Ora, fosse quem fosse, a repugnância não era maior que a curiosidade, e aquela mancha me aprazia de alguma forma, nem que fosse pela dúvida, será, pensava, que se ninguém a limpar e ela florescer por meses, poderá tomar conta da pia inteira? A curiosidade mórbida e o acomodamento formam uma aliança de impulsos dificilmente superável.

Paris, abril de 2008

Frases ranzinzas


«Eu até preciso de ajuda, mas não da sua.»

(Da série Coisas que eu sempre tenho vontade de dizer ao funcionário da locadora, mas fico com vergonha porque mais cedo ou mais tarde vou encontrá-lo de novo)




quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Honduras e o festival de hipocrisia

Lula cumprimenta Ahmadinejad, o legítimo presidente iraniano


Deixemos de lado, por um momento, nossa opinião a respeito da democracia e do golpe de Estado. Nem todo mundo considera a primeira um fim em si mesmo, nem o segundo um mal em si mesmo. «Democracia» e «golpe» não são valores a serem desposados ou rechaçados a priori. Democratas podem, eventualmente, defender a ruptura de um regime constitucional democrático. Autoritários podem, também, defender a democracia.

Isto posto, não deixa de ser surpreendente o festival de hipocrisia a propósito do «golpe» em Honduras. Com algumas exceções, todos condenam o governo «golpista» hondurenho. Porém, mesmo que se admita ter sido um golpe o que ocorreu no país, e se ignore, portanto, a desobediência de Zelaya à Suprema Corte e à Constituição, e mesmo que se considere um golpe de Estado algo intrinsecamente mau, pergunto: quem pode condená-lo? Eu ou você, talvez. Mas Lula? Então o governo «golpista» hondurenho é menos legítimo do que, digamos, o governo iraniano ou o líbio? Podem condenar o governo «golpista» os jornalistas da Globo e da Folha de São Paulo? A mesma imprensa que condenou com veemência o golpe militar brasileiro de 1964 e o regime subseqüente? Hipocrisia pouca é bobagem.


quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Godwin e a punição


Na última semana, fiz com meu pai uma matéria para o Psi, jornal do Conselho Regional de Psicologia. Ela tratava do aumento mundial da população carcerária e citava a opinião de representantes de correntes críticas ao sistema penal. Uma dessas correntes, defendida por alguns poucos acadêmicos, juristas e seus entourages, é a do abolicionismo penal. Trata-se de uma crítica não apenas ao sistema penal, mas à própria noção de punição. O assunto é interessante e, posto não tenha mais que fazer, decidi dedicar-lhe algumas linhas.

O abolicionismo penal se baseia, em boa medida, nas idéias do inglês William Godwin (1756-1836). Em 1793, Godwin concluiu An Inquiry Concerning Political Justice and Its Influence on Moral and Happiness, obra cujo capítulo VII se detém demoradamente no problema da punição. São três os fins aos quais a punição se destina, diz ele: (i) a contenção, (ii) a reforma e (iii) o exemplo. O que segue abaixo é, primeiro, uma exposição concisa dos três fins da punição e suas respectivas críticas; em seguida, um comentário sobre os três e a conclusão de que só a crítica a um deles tem sentido.

(i) A contenção parte da premissa de que um indivíduo que cometeu um mal deverá, com mais chances que os outros, cometer outro mal no futuro. Se não estamos de acordo com tal afirmação, ou se, ao menos, não cremos que um indivíduo infrator esteja mais inclinado a cometer uma infração do que qualquer outro, então a punição com vistas à contenção deixa de fazer sentido.

No que se refere (ii) à reforma, é preciso acreditar, para nela crer, que a coerção empregada contra um indivíduo pode ser uma boa maneira de ensinar-lhe que cometeu um equívoco. Note-se que a punição com vistas à reforma é aplicada ao infrator mesmo que sua consciência não concorde com o fato de que o que fez foi uma infração. A coerção, diz Godwin, «não pode convencer, não pode conciliar, mas, ao contrário, aliena a mente daquele contra quem é empregada. A coerção não tem nada em comum com a razão e portanto não pode ter nenhuma propensão a cultivar a virtude. (...). Pode a injustiça ser o melhor modo de disseminar princípios de igualdade e razão?». Se cometi uma ofensa a alguém, devo ser punido mesmo que, do meu ponto de vista, não tenha cometido ofensa alguma? E acaso tal punição me inclinará mais a compreender que cometi uma ofensa (supondo que o tenha sido)?

Por último, o terceiro dos fins da punição é (iii) o exemplo, passível de receber todas as objeções levantadas contra a contenção e a reforma. Aí estão, grosso modo, as críticas de Godwin aos fins da punição. Ora, há aí algumas questões importantes, sobretudo em relação à punição como reforma do indivíduo. Por ser a reforma o fim punitivo mais complicado, e por ser também uma das bases do terceiro fim (o exemplo), é melhor tratarmos, em primeiro lugar, da punição como contenção.

Antes, porém, um esclarecimento. Não sei se a crítica de Godwin se dirige apenas ao sistema penal ou se é dirigida também à prática cotidiana da punição. De todo modo, o que me interessa aqui é justamente a prática cotidiana, isto é, a «psicologia» da punição. Admitamos, então, que estamos a falar não da punição do Estado, mas da punição nas relações humanas em geral. Admitamos também que falamos de homens e não de crianças; a discussão sobre educação infantil tornaria este post muito mais longo do que já é.

Embora gaste boas páginas para se justificar, a objeção de Godwin à contenção é bastante precária. Sua premissa é a de que de um indivíduo que pecou não se pode esperar outro pecado mais do que se pode esperá-lo de qualquer outro indivíduo. A única sustentação possível a tal raciocínio é a de um ceticismo radical. É como dizer: «o sol nasceu e se pôs durante todos os dias de minha existência, mas nada me garante que ele nascerá amanhã». Sim, é verdade. Mas, se você tivesse que apostar a vida da sua mãe, apostaria que o sol vai nascer amanhã, correto?

Disso não se depreende que um indivíduo que cometeu uma infração vá forçosamente cometê-la de novo. É até possível que ele carregue um coração contrito e, em verdade, esteja menos propenso a cometer de novo aquela infração do que qualquer um de nós a cometê-la pela primeira vez. De todo modo, nossa experiência nos diz que, se Fulano furta uma maçã na feira todo dia, é mais provável ver ele furtar de novo do que ver Beltrano, que nunca roubou uma maçã, fazê-lo pela primeira vez.

O argumento de Godwin contra a punição como contenção é, pois, bastante frágil. Tal não é o caso, porém, daquele contra a punição como reforma. De fato, a idéia de usar a violência como meio para educar um indivíduo é no mínimo questionável. No mais das vezes, a violência alimenta o rancor do indivíduo infrator e não o torna mais capaz de assumir seus erros do que antes. Se fui ofendido por alguém, decerto não o convencerei de que tal ato me foi uma ofensa dando-lhe um soco na cara – pelo contrário, apenas alimentarei a espiral do ressentimento. Por conseguinte, deveríamos, diante de uma infração, apenas aguardar o arrependimento do infrator, sem constrangê-lo ou coagi-lo de forma alguma. Certo?

Antes de responder à pergunta acima, duas séries de considerações podem ser feitas. (1) Em primeiro lugar, Godwin possui uma visão por demais otimista do homem. Seus argumentos pressupõem um homem maduro, racional e pouco inclinado ao mal. Esta visão não se sustenta. Basta vermos o quanto caímos nos mesmos erros, como sustentamos os vícios que tentamos combater, e, por fim, como somos vaidosos, acreditando que os erros dos outros são mais graves que os nossos – isso, é claro, para aqueles que tentam seguir uma conduta correta; muita gente nem mesmo reflete sobre as conseqüências últimas de sua conduta, e se afunda nos vícios como uma criança se afundaria numa piscina de chocolate.

(2) Em segundo lugar, para haver punição é preciso haver lei, seja ela natural, revelada ou o que for. Em outras palavras, a punição só faz sentido se acreditamos haver condutas certas e condutas erradas. Se eu creio ser a moral totalmente subjetiva e inapreensível pelos homens, então qualquer conduta que eu considere errada será errada para mim. Logo, meu esforço por corrigir a conduta de outros homens não será senão um esforço para exercer minha vontade sobre eles.

Se acreditamos haver condutas certas e erradas, e acreditamos que os homens podem agir segundo uma ou outra, então também acreditamos ter os homens ao menos um pouquinho de liberdade. Se admitimos isto, podemos também falar em responsabilidade, noção fundamental para pensarmos a punição. Se somos responsáveis e sabemos termos ofendido alguém, buscaremos, em princípio, reparar esta ofensa – e, neste caso, pode-se dizer que nos punimos consciente e voluntariamente.

É preciso dizer que a consideração exposta até aqui – a relação entre moral, liberdade e responsabilidade – pode sofrer objeções. Uma delas, pouco discernível de uma provocação, merece algum exame. Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche diz o seguinte: «Onde quer que responsabilidades sejam buscadas, costuma ser o instinto de querer julgar e punir que aí busca. O vir-a-ser é despojado de sua inocência, quando se faz remontar esse ou aquele modo de ser à vontade, a intenções, a atos de responsabilidade: a doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer achar culpado. Toda a velha psicologia, a psicologia da vontade, tem seu pressuposto no fato de que seus autores, os sacerdotes à frente das velhas comunidades, quiseram criar para si o direito de impor castigos ― ou criar para Deus esse direito...».

Eu poderia objetar que Nietzsche é contraditório e que ele mesmo afirma, noutro livro, cousa muito contrária ao trecho acima. Basta ver em Além do Bem e do Mal, §262, sua afirmação de que a moral aristocrática – sua preferida e oposta à moral dos fracos, isto é, cristã – é intolerante nas leis penais. Mas creio que seu argumento tem algum sentido, sobretudo se trocarmos os termos «punir» e «castigo» por vingança. Neste caso, de fato, poderíamos dizer que o instinto de vingança (ou o ressentimento) atua muitas vezes por trás da busca por responsabilidades. E a vingança não pode, por certo, servir como base à punição.

Aqui chegamos a uma questão fundamental: vingança e punição são a mesma coisa? Respondo que não. Se puníssemos alguém movidos por vingança, o argumento de Godwin contra a punição como reforma seria válido. Entretanto, pode-se muito bem presenciar a prática de um ato mal e, em seguida, punir o autor daquele ato, sem desejo de vingança. Talvez o sujeito punido ache que agimos movidos pela vingança. E, talvez, não tenhamos como lhe provar o contrário. Saberemos, porém, que agimos unicamente com vistas à correção de um mal, ainda que a prova para tanto reste apenas em nossa consciência.

A despeito da antropologia equivocada de Godwin, podemos, pois, concordar com ele e afirmar que a violência não é um meio adequado para a educação. Isso significa que, sempre que possível, deveríamos deixar o infrator refletir e se arrepender sem coerções, no máximo sinalizando a ele que, para nós, ele cometeu uma infração. É claro que, às vezes, «sinalizar» não será o bastante, e teremos que falar alto, gritar-lhe ou algo pior. É por isso que não podemos nos furtar de dizer: sempre que possível.

Por fim, no que se refere à crítica de Godwin à punição como exemplo, trata-se de um equívoco baseado em sua compreensão do homem. Conforme dito, Godwin vê o homem como um ser inclinado ao bem. Isto é de um absurdo patente. Deixe os homens livres de punições por suas condutas erradas e a sociedade entrará em convulsão. Ainda bem que, mesmo não havendo punições externas, haverá sempre a consciência a lhes dizer que erraram. O homem é um ser inclinado ao mal, mas é capaz de se arrepender.

Seria oportuno lembrar aqui da Epístola aos Romanos. Diz São Paulo: «Com efeito, a cólera de Deus se revela do alto do céu contra toda impiedade e toda injustiça dos homens que mantêm a verdade cativa da injustiça; pois o que se pode conhecer de Deus é para eles manifesto: Deus lho manifestou... eles são pois inescusáveis, visto que, conhecendo a Deus, não lhe renderam nem a glória, nem a ação de graças que são devidas a Deus; pelo contrário, eles se transviaram em seus vãos raciocínios e o seu coração insensato se tornou presa das trevas» (Rm 1, 18-21). E então o que lhes aconteceu? Diz São Paulo: «Por isso Deus os entregou, pela concupiscência dos seus corações, à impureza na qual eles mesmos aviltam os próprios corpos» (Rm 1, 24). Sim, é isso mesmo. Deus os entregou a seus vícios e os deixou continuar a pecar. E essa é uma terrível manifestação da cólera divina, de vez que deixa os homens destruírem seu laço com Deus e, logo, afasta-os da liberdade.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Gnosticismo Revisitado

«Assim como o fiel é sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano não pára de lançar em sua boca, assim existe também a dúvida que o incrédulo nutre a respeito de sua incredulidade e da totalidade real do mundo que ele resolveu erigir em seu tudo. Jamais terá certeza plena da completude de tudo o que viu e que ele declara ser tudo.»


Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo



A Verdade não existe. Não há senão verdades, no plural. A história, tal qual a conhecemos, não é a história verdadeira, mas uma entre outras possíveis. Ela é feita de vencedores e vencidos, mas, para o bem ou para o mal, são os primeiros que a escrevem. Tampouco há bem e mal, porém. Há, sim, os caminhos de cada um, e a busca solitária pelo próprio conhecimento. A crença numa Verdade e em valores objetivos leva ao fundamentalismo, à indisposição ao diálogo e à inclinação ao ressentimento. O caso é ainda pior se uma instituição se arroga o direito de ser a encarnação da Verdade – ou a representante daquele que disse ser tal encarnação, o que dá no mesmo. Aí a prepotência não tem limites e as conseqüências são terríveis. Felizmente, porém, há quem resista à prepotência. No século XVIII, ela se deu pelos iluministas Kant, Hume, Diderot, Voltaire. E, nos primeiros séculos da era cristã, tal resistência à opressão fundamentalista se deu pelos gnósticos.


Este é, em síntese, o argumento da professora da USP Marília Fiorillo em O Deus Exilado: Breve História de uma Heresia (Civilização Brasileira, 2008). Como disse, é uma síntese. O livro se divide em sete partes independentes. A primeira narra o drama dos mandeanos, «único grupo gnóstico que sobreviveu em todo o mundo». Os mandeanos habitavam o Iraque e agora sofrem as agruras da guerra. A segunda parte, muito interessante, revela as disputas ocorridas em torno das descobertas, no século XX, da Biblioteca de Nag Hammadi e do Códex Tchacos (este já em 2006). Ambos são conjuntos de evangelhos gnósticos. Juntos, reúnem os Evangelhos de Tomé, Judas, Maria e tantos outros. Fiorillo narra habilmente as batalhas entre cartéis de eruditos a disputar os textos então recém-descobertos. Se o leitor ainda via acadêmicos com olhar romântico, receberá um balde de água fria. A autora nos conduz pelas acirradas disputas entre intelectuais franceses e alemães; tais disputas fizeram com que os textos da Biblioteca só fossem divulgados na década de 1970, trinta anos depois de sua descoberta, em 1945. Tudo graças à avidez pela notoriedade que lhes resultaria a tradução e o comentário das antiguidades.


Tudo isso porém, são aperitivos. O conteúdo substantivo do livro está nas partes III a VI, onde Fiorillo exporá mais detidamente – mas sempre em linguagem leve e fácil – o que resumi no primeiro parágrafo. Se a linguagem é leve, porém, o mesmo não se pode dizer das opiniões da autora acerca da Igreja. De fato, trata-se de um libelo contra o catolicismo, donde não ser uma surpresa a referência, feita logo na introdução do livro, aos iluministas supracitados. Para Fiorillo, a Igreja e sua suposta «Verdade» são tão-somente o resultado de uma vitória histórica. E essa vitória, diga-se de passagem, não teve nada de gloriosa. Não fosse Constantino a apadrinhar os católicos – uma entre as inúmeras seitas cristãs que pululavam no momento – e hoje não haveria a Santa Igreja.


No início da cristandade, diz Fiorillo, havia diversas igrejas cristãs. Uma delas caiu nas graças de um imperador romano e se tornou a religião oficial do Império. As outras, a partir daí, foram oficialmente consideradas «gnósticas» ou «hereges». Mas o que é o gnosticismo? Difícil responder. Fiorillo considera que a melhor resposta foi dada pelo filósofo Hans Jonas. Segundo ele, um fenômeno gnóstico deve cobrir duas exigências: (1) «O gnosticismo é a convicção da identidade divina do homem, e de que esta diz respeito tanto à sua proveniência como ao seu destino»; (2) «A gnose não se faz por procuração; é um processo estritamente pessoal, que permitiria ao indivíduo libertar-se do domínio do mal, isto é, do mundo material de vicissitudes».


Para os gnósticos, este mundo é mau e não foi criado por Deus. Jonas e Fiorillo parecem simpatizar com a idéia, como fica claro neste trecho: «Horrores como os ocorridos em Auschwitz – ou em Kosovo, Sarajevo, Ruanda, Darfur, Libéria, Bagdá, Cabul; a lista é numerosa e sempre passível de atualização – nos convencem de que o mundo, se um dia foi criação divina, já há muito deixou de ser.». Assim, pois, das duas uma: ou Deus é mau, ou não participou da Criação. Aqui não posso deixar de me furtar à pergunta: será que Fiorillo sabe o quão má ela mesma é? Que fique claro, eu nem mesmo a conheço. Mas, sabendo ser da mesma espécie que ela, e sabendo o quão mau eu sou, imagino que ela me seja semelhante neste ponto, ao menos um bocadinho. Pois será então que ela se julga alguém tão distante dos responsáveis pelas atrocidades mencionadas? Dizer que Deus não é bom ou que Ele é alheio à Criação não parece uma declaração de «eu não assumo qualquer responsabilidade pelo mal no mundo»?


Nos ataques mordazes ao catolicismo, Fiorillo gosta de mostrar as semelhanças deste com o fundamentalismo islâmico. Assim, comenta que, para Tertuliano, o ato de se barbear era ímpio e as mulheres deveriam se cobrir com véus. Tertuliano nasceu em Cartago, hoje Tunísia, em 150. Converteu-se por volta dos 40 anos à fé católica. Por volta de 207, rompeu com os católicos e ingressou nas fileiras da heresia montanista.


Noutro momento, Fiorillo alude à inflexibilidade dos primeiros cristãos (católicos) e de sua inclinação pelo martírio. Nisto eram «insuflados pelos bispos, que os exortavam a celebrar o martírio como a oportunidade de imitar a ‘paixão de Cristo’». Por vezes, diz ela, os juízes eram moderados e queriam mesmo lhes fazer vista grossa, mas os cristãos se recusavam a acender um incenso que fosse num altar pagão. Preferiam a morte. Quase a desejavam.


Como ler algo semelhante e não pensar nos mártires muçulmanos? Aqui faço três observações, duas delas óbvias. A primeira é que os mártires muçulmanos de hoje levam muita gente com eles. A segunda é que a crítica ácida de Fiorillo aos mártires cristãos desconhece que, afinal, não é muito fácil escolher a morte. A maior parte das pessoas hesitaria mesmo em arriscar a vida por um amigo. Parece até que eles escolheram o caminho mais fácil. Por fim, e essa observação não é óbvia porque está no próprio livro, a própria autora tenta, logo em seguida, diminuir o escândalo dos mártires: «Talvez não fosse exatamente assim. Nem os mártires foram tantos, nem o Império tão intransigente.». O martírio pode representar a força de uma idéia, em sua melhor feição, ou a loucura pessoal, na pior. Fiorillo quer pintar o martírio apenas como loucura.


Com o fortalecimento da Igreja Católica, o gnosticismo foi perseguido e sofreu a primeira campanha anti-herética da história, numa antecipação do que seriam as perseguições da Inquisição às heresias. Não fossem as descobertas dos evangelhos gnósticos no século XX, e só saberíamos do gnosticismo pelos depoimentos de seus detratores, como Santo Irineu e Tertuliano. Conforme dito, tudo que restou dos gnósticos foram os mandeanos, seus últimos sobreviventes. Certo?


A despeito de minhas opiniões sobre O Deus Exilado, gostaria de fazer duas considerações finais que, espero, sejam pouco parciais. Em primeiro lugar, pouco do que Fiorillo conta é novidade. Excetuando-se as intrigas por ocasião da descoberta dos evangelhos gnósticos, a trágica história dos mandeanos e algumas poucas informações a respeito do gnosticismo, não há ali nada de novo. Não para quem já tenha lido Nietzsche, Marx, Feuerbach e tutti quanti. O povo mandeano não é tudo que restou dos gnósticos. Basta ver a história da filosofia. Basta abrir o jornal. O discurso gnóstico resta em todo lugar, conquanto sua roupagem varie.


Em segundo lugar, Fiorillo perde em poder de persuasão ao adotar uma postura tão agressiva. Talvez ela não queira persuadir ninguém, como alguns gnósticos, segundo ela, também não queriam. Proselitismo é coisa de crente. Mas aí seria de se perguntar o porquê de escrever e publicar, e ainda com conteúdo tão panfletário. O livro de Fiorillo é um Adversus Haereses às avessas.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

O comunista


COMUNISTA: Escrevi isso ontem, dá uma olhada. Intitula-se «Contribuições à análise do fim da sociedade de classes».Você pode acreditar que meus colegas e parentes se negaram a subsidiar esse trabalho?

AMIGO DO COMUNISTA: Por que você precisa de subsídio?

COMUNISTA: Tá brincando? Meu trabalho deveria interessar a todos eles, de vez que somos todos vítimas da reificação do capital. Isso lhes diz respeito diretamente!

AMIGO DO COMUNISTA: E se eles não concordarem com a sua análise?

COMUNISTA: Não me surpreenderia! Eles não são mais que burgueses conformados! Não entendem que também sofrem sob o capitalismo! São ignorantes e ajudam a direita.

AMIGO DO COMUNISTA: Mas você aceitaria o dinheiro deles.

COMUNISTA: O que você quer que eu faça, sofra?


(Inspirado numa tira de Calvin & Hobbes)

terça-feira, 2 de junho de 2009

Hermenauta, o imbecil

O senhor Nils-Axel Mörner, chefe do departamento de Paleogeofísica e Geodinâmica da Universidade de Estocolmo até 2005, presidente da Comissão de Mudanças do Nível do Mar da INQUA (International Union of Quaternary Research) durante 1999-2003, é, segundo Reinaldo Azevedo, a maior autoridade mundial em aquecimento do mar. Sabem o que ele acha? Contrariando o atual senso comum, diz ele que o nível do mar não se elevou nos últimos 50 anos. Ocorre que ele é também um admirador da técnica chamada dowsing.


Dowsing, em português, é radiestesia. Eu não sei o que é, mas o Hermenauta me esclarece: trata-se de uma técnica para captar radiações de diversas origens, incluindo objetos inanimados (águas subterrâneas, por exemplo) e até mesmo espíritos. Conclusão do Hermenauta: o senhor Mörner, citado como especialista por Reinaldo Azevedo, é decerto um desequilibrado e charlatão. Entenderam? Vou explicar: o senhor Mörner é um cientista. Mas ele é um admirador da radiestesia. Entre suas inúmeras utilidades, a radiestesia (alega-se) pode ser usada para captar radiações de espíritos. Logo, o senhor Mörner é um desequilibrado e charlatão. Ora, mas ele acredita em espíritos? O Hermenauta não sabe. Ele já acreditou em espíritos? O Hermenauta também não sabe. Para que o senhor Mörner defende a radiestesia? Não sei, tampouco sabe o Hermenauta. Mas se o senhor Mörner é admirador de uma técnica que, segundo a Wikipedia, pode ser usada para procurar espíritos, ele é com certeza um desequilibrado. E charlatão. Percebem a causalidade gritante?


Dados os fatos, vi-me compelido a botar um pouco de bom senso na cabeça do Hermenauta. Eis o que lhe argumentei:


«Vê, eu não tenho opinião formada a respeito do aquecimento global. Há cientistas a favor e há cientistas contra. A maior parte é a favor? Talvez. Isso prova algo? É certo que não. O mesmo vale para a elevação do nível do mar. A verdade é que o Hermenauta também não sabe se o aquecimento global e a elevação do nível do mar são causados pelo homem ou não. E, por favor, este gráfico no fim do post* é um golpe baixo, de vez que ninguém, repito, NINGUÉM, vai se dar ao trabalho infernal de tentar checar seus dados. Usar gráfico em discussão é golpe baixo. Com relação a esse sujeito, Nils-Axel Mörner, se ele é um “desequilibrado” e “charlatão”, o que podemos pensar da INQUA e da Universidade de Estocolmo? Seriam centros de charlatanice? (Não que isso me importe)»


* O Hermenauta ilustrou o fim de seu post com um gráfico, todo ele muito científico, para provar que o nível do mar está de fato aumentando.


Eis como o Hermenauta me respondeu:


«“A maior parte é a favor? Talvez. Isso prova algo? É certo que não.” Você já ouviu falar em Método Delphi? Nãããão? Bom, é hora de procurar saber. “E, por favor, este gráfico no fim do post é um golpe baixo”. Você está mesmo dizendo que 100% do que entendemos como Ciência é um “golpe baixo”? “de vez que ninguém, repito, NINGUÉM vai se dar ao trabalho infernal de tentar checar seus dados. Usar gráfico em discussão é golpe baixo.” Você está mesmo tentando dizer que a Ciência não progride justamente pela competição entre pesquisadores que reproduzem ou tentam reproduzir os resultados uns dos outros? Você está mesmo tentando demonstrar à audiência deste blog que ignora totalmente o funcionamento do método científico?»


Dado que o Hermenauta recusou minha tréplica em seu blogue fedorento, publico-a a seguir:


«Hermenauta, você tem razão. Parece que me precipitei ao dizer que o fato de a maioria ser a favor de algo não prova a verdade desse algo. De fato, peguei aqui da estante o Logik der Forschung (1973) e, no capítulo “Causalidade, Explicação e Dedução de Predições”, Popper diz o seguinte: “Assim sendo, quando a maioria dos pesquisadores declararem válida uma teoria qualquer, a maioria mesma é prova de que a teoria é verdadeira”. Outro a corroborar as idéias do Hermenauta é Kuhn, que, no seu The Structure of Scientific Revolutions (1962), diz o seguinte: “A distinção entre fato e teoria é artificial. O que importa é que, quando a maioria dos cientistas levanta os bracinhos e apóia uma teoria qualquer, ela se torna um paradigma e, logo, verdade” (Tive que traduzir os dois trechos, porque se o Hermenauta lê tão bem em inglês e alemão como escreve mal em português, não entenderia nadinha). Vê-se, pois, que o Hermenauta estava certo: o aquecimento global está provado porque a maior parte dos cientistas acha que ele é verdade. No próximo congresso sobre aquecimento global, os cientistas se reunirão e votarão, por maioria simples, o que ainda é verdade e o que não é. Com relação aos gráficos, cumpre dizer que não, gráficos não são golpe baixo. Apenas quanto utilizados em discussões comezinhas de blogues intestinos e malcheirosos como o seu.»


sexta-feira, 29 de maio de 2009

Millennium


De tempos em tempos, somos confrontados com a atroz presença do Mal. O que fazer diante dele? Como compreendê-lo? Seria ele a disfunção essencial do ser humano? Proviria ele do homem ou, ao contrário, ser-lhe-ia anterior? A um católico, a questão pode ser colocada da seguinte forma: se Deus é todo-poderoso e providente, por que existe o Mal? A Igreja responde: Deus não permitiria o mal se do mesmo mal não tirasse o bem.


Para religiosos e agnósticos, no entanto, quais sejam as respostas que dêem às perguntas acima, fato é que o Mal parece, por vezes, dotado de uma dimensão própria. É difícil concordar que se trata, pura e simplesmente, da ausência do bem. Ora, se não bastasse a vida cotidiana, que lembra aos mais afortunados a presença do Mal por jornais e noticiários, eis que uma série de TV faz questão de esfregá-lo em nossa cara. Trata-se de Millennium, de Chris Carter, mesmo criador de Arquivo X.


Ao ouvir comparações entre as duas séries, é provável ouvirmos que a primeira trata de questões sobrenaturais – OVNIs, vampiros, lobisomens e monstros em geral –, ao passo que à segunda resta, apenas, os mistérios naturais. Ora bem. Isso seria negar qualquer dimensão sobrenatural ao Mal, tal qual o vemos em nossas vidas. Em verdade, creio ser, dentre as duas, Millennium a que mais nos convida a refletir sobre o mundo sobrenatural. Digamos ser pouco provável que você encontre um alienígena em algum momento da vida. Já um pai de família insuspeito, que estuprou e engravidou as filhas e, pasmem, ainda criou seus filhos-netos, isso você pode encontrar – e, se lê os jornais, já encontrou, basta lembrar do amável Joseph Fritzl. Este exemplo compõe a trama de um dos episódios da primeira temporada de Millennium. A diferença é que, na história real, escândalo recente nos jornais de todo o mundo, o pai de família guardava a filha estuprada e os filhos-netos num porão. O Mal na vida real é mais atroz do que o que vemos em tevê.


Millennium nos conta a história de Frank Black, ex-agente do FBI especialista em crimes hediondos. Após décadas de trabalho a tentar pensar como os criminosos, Black logrou bela vitória. Sua mente desenvolveu a capacidade de ver como eles vêem. Some-se a isso um vasto conhecimento do modus operandi de um assassino, e voilà, eis um grande investigador. Desde que se ausentou da polícia federal, Black passou a trabalhar com o Millennium, misterioso grupo de ex-agentes que presta «consultoria» às polícias locais. Entre os monstros que Black e o Millennium investigam – todos bem reais –, encontram-se muitos justiceiros, assassinos que crêem estar purificando a humanidade de seus pecadores. Alguns são religiosos, outros descrentes no sistema judiciário, e há os que são loucos mesmo.


A série fornece terror e suspense de bom gosto, sem apelação. Na realidade, se alguma crítica pode ser feita neste aspecto, deve tomar o sentido oposto. Millennium é a série de tevê mais anticomercial que já vi em minha vida. E, sim, eu já vi muitas. Esqueça perseguições de carros. Esqueça mulheres lindas pouco agasalhadas – há uma mulher linda, a esposa de Black, mas ela está sempre vestida. Tampouco vemos as personagens em festas ou confraternizações. Não há, enfim, aquele momento do seriado no qual o romance – ou a sua possibilidade – surge entre as personagens. Não. Há apenas o Mal. De um lado, o Mal superlativo personificado em assassinos, e, de outro, meia dúzia de homens bons tentando contê-lo.


No cômputo geral, minha avaliação é muito positiva. Tenho, é claro, algumas críticas. Há algumas questões interessantes que o seriado não explora. Em primeiro lugar, a relação entre Black e sua esposa. É de se supor que haja brigas entre o casal. Se até quando o esposo tem profissão normal, como mecânico ou publicitário, a mulher reclama e lhe cobra, o que dizer de alguém cujo trabalho é absolutamente irregular, arriscado e desgastante? «Querido, como foi o trabalho hoje? ─ Ah, corriqueiro, o assassino serial que eu prendi só esquartejava as crianças, não era como o último que as estuprava antes e depois comia suas vísceras». Como eu disse, é de se supor pelo menos uma briguinha.


Em segundo lugar, o seriado não explora a relação entre o grupo Millennium e as forças do Estado. Imagino que policiais não se sentiriam muito à vontade com um grupo privado que, a despeito de ser composto por ex-agentes, faz o serviço dos próprios policiais muito melhor do que eles mesmos. É de se supor invejas e desentendimentos, para dizer o mínimo. Em terceiro e último lugar, o seriado não deixa claro como o grupo Millennium paga suas contas. Acaso é trabalho voluntário? E, se não, quem os contrata?


Somados os prós e os contras, a sugestão permanece de pé. Compre a primeira temporada de Millennium e assista uma grande série, recheada de suspense e muita, muita presença do Mal. O risco é, depois, você querer se tornar policial ou se converter a alguma religião. Mas, contra qualquer uma das duas opções, a covardia costuma vencer.


(Mais informações: Arquivo Confidencial)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Teoria e ciência políticas

Se é possível falar de continuidade e distinção na ciência política hoje, nem por isso é possível desconhecer a profunda tensão na articulação entre as diferentes aproximações dentro da disciplina. Essa tensão se mostra sobretudo na clivagem entre ciência política (ou teoria empírica) de um lado e teoria ou filosofia políticas de outro, e revela diferentes aproximações método e epistemológicas. Não raro, teoria e filosofia políticas são referidas como «teoria normativa» como uma forma de distinguir suas preocupações e valores da «teoria empírica», isto é, a ciência política propriamente dita. Essa distinção se acentuou em uma época na qual as agendas behavioristas moldaram as fronteiras disciplinares e refletem a influência de visões neo-positivistas. Acusa-se a pesquisa em teoria política de que não há parâmetros para julgar seus resultados e de que eles não trazem nada de novo. Enfim, teoria e filosofia políticas seriam vistas como distintas da ciência política empírica – algo com o que autores de ambos os lados concordam.


Para Andrew Vincent, em The Nature of Political Theory (2004), filosofia e teoria políticas são vistas por seus adeptos como uma empresa universal e eterna, que busca os fins da existência social, tentando prescrever como deveríamos atingi-los. Para tanto, utilizam suposições sobre a natureza humana e estabelecem como essa suposições podem ser desenvolvidas e satisfeitas em estruturas políticas. Vincent critica os que assim pensam: para ele, é problemática a construção de uma tradição da teoria política que remonta aos gregos e vem até nós. A própria noção de «teoria política» e a prática do teórico político, a despeito de serem comuns hoje, só se tornaram lugares-comuns na metade do século XX. A teoria política, enquanto disciplina acadêmica, é um produto do século XX. É, pois, compreensível (mas não de todo convincente) que ela queira criar um passado para si própria. Vincent nota, por fim, que aqueles que defendem a teoria política e a enxergam como um contínuo diálogo que remonta aos gregos se colocam, curiosamente, como participantes do dito diálogo. Em outras palavras, os autores que enxergam a teoria política como uma grande tradição se enxergam a si próprios como parte dela – ele cita, entre outros, Arendt, Strauss e Voegelin.


O balanço parece ser negativo para a teoria e filosofia políticas. Suas pesquisas não trazem nada de novo, não podem ser julgadas de maneira adequada e seus maiores representantes crêem – coitados! – dialogar com Platão e Aristóteles. É claro que o esboço da situação, apresentado desta forma, é caricatural. Para começar, acho que a maior parte dos cientistas políticos que fazem pesquisa empírica reconhecem a importância da teoria. Seja como for, é possível encontrar defesas da teoria política normativa honestas e razoáveis.


Em seu pequeno artigo Political Theory, Political Science, and Politics (2002), Ruth Grant faz uma dessas defesas. Ela parte de uma constatação: a teoria política permanece obstinadamente filosófica. Tomemos, pois, a premissa daqueles cuja queixa é que a teoria política não pertence a uma disciplina devotada ao estudo científico e sistemático do fenômeno político, já que o conhecimento adquirido pela pesquisa em teoria política não pode ser validado ou falseado.


Grant responde tal objeção de três formas. (1) A primeira é aceitá-la nalguns aspectos: não há necessidade de defender a pesquisa em teoria política porque sua missão essencial não é a pesquisa, mas a educação. Na teoria política (e ciências humanas em geral), a atividade de ensinar e a de pesquisar são quase idênticas. (2) A segunda é argumentar que tanto as ciências «duras» como as ciências sociais são, na realidade, mais moles do que parecem. Há, é certo, descoberta de novos fatos, mas os grandes avanços na ciência são freqüentemente avanços de interpretação, que nos permitem explicar – de forma mais coerente – um grupo de fatos já conhecidos. (3) A terceira é reconhecer o caráter distintivo da pesquisa em ciências humanas em geral. Para Grant, os teóricos políticos desejam tornar mais claras questões sobre as quais o entendimento humano não pode ser certo e completo.


Uma das preocupações da teoria política seria a do julgamento. Para Grant, julgamentos podem ser refinados e melhorados. Parece difícil a algumas pessoas concordar com isso, de vez que mesmo julgamentos morais são tratados como questões de gosto individual. Mas que as pessoas discordam é coisa que se sabe há muito tempo; isso não precisa nos levar à conclusão epistemológica de que o julgamento moral é impossível.


Grant continua e afirma que, devido a seus métodos interpretativos e históricos, a pesquisa em ciências humanas é conservadora. É conservadora no sentido óbvio de que depende da conservação do passado, dos registros do pensamento e da ação humanas. Mas também o é em sentido menos evidente. Estudar os produtos do pensamento e imaginação humanos durante a história produz, é claro, uma apreciação da imensidade das conquistas humanas. Porém, produz também um reconhecimento dos limites da compreensão humana e de suas capacidades. Torna-se aparente a idéia de que não há nada de novo sob o sol, e, para Grant, esta idéia limita o impulso do utopismo científico – assim como o limita o conhecimento histórico em geral. (Eu não hesitaria em somar ao científico o utopismo político.)


O artigo de Grant faz uma defesa interessante da pesquisa em teoria política e seu caráter distintivo. Os parâmetros para julgá-la não são, por certo, os mesmos utilizados na pesquisa empírica. Mas eles existem. É importante que teóricos políticos reconheçam a validade das pesquisas empíricas, assim como é importante que cientistas políticos reconheçam a necessidade da pesquisa em teoria política. Se não por outras razões, basta dizer que a convivência assim o exige: em 2002, nos EUA, 81% dos teóricos políticos faziam parte de departamentos de ciência política.

terça-feira, 17 de março de 2009

Os meninos mimados

Em A Rebelião das Massas, Ortega y Gasset trata do fato homônimo que é, para ele, o mais importante na vida pública européia de então (1930). Enquanto fato psicológico, massa é, segundo o autor, «todo aquele que não se valoriza a si mesmo – como bem ou como mal – por razões especiais, mas que se sente ‘como toda a gente’ e, no entanto, não fica angustiado, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos outros». Autrement dit, se o homem que compõe uma minoria seleta é aquele que exige mais de si que os outros, ainda que não logre cumprir na sua pessoa essas exigências, o homem-massa, por outro lado, não exige de si nada de especial, pois para ele viver é ser em cada instante o que já é, sem esforço de perfeição. A rebelião das massas não é senão o advento desse tipo de homem ao pleno poderio social.


O século XIX pariu o homem-massa. Que aspectos apresenta a sua vida? De início, uma facilidade material incrível. Diz o autor: «O homem médio de qualquer classe social encontrava o seu horizonte econômico mais alargado de dia para dia. Cada dia acrescentava um luxo novo ao repertório do seu standard vital. Cada dia a sua posição era mais segura e independente do arbítrio alheio. O que antes se teria considerado um benefício da sorte que inspirava humilde gratidão ao destino, tornou-se um direito que não se agradece, mas se exige. (...). A essa facilidade e segurança econômica acrescentem-se as físicas: o comfort e a ordem pública. A vida corre sobre cômodos carris, e não há verossimilhança de que intervenha nela algo de violento e perigoso.».


A vida se apresentou a esse homem como que isenta de impedimentos. Mesmo a vida pública não lhe oferece limitações. Todos os homens são legalmente iguais. Esse cenário, concebido pelo século XIX, possui três princípios fundadores: democracia liberal, experimentação científica e industrialismo, os dois últimos podendo se resumir à técnica.


O mundo que rodeia o homem-massa não lhe limita em nenhum sentido, não lhe põe contenção alguma, pelo contrário, atiça seu apetite e lhe faz crer que tudo será ainda melhor no futuro. O mundo de fins do século XIX e início do XX não tem só perfeição e amplitude, mas sugere a seus habitantes enorme segurança sobre seu futuro: amanhã o mundo será ainda mais rico e mais amplo. O homem-massa, ao se deparar com este mundo tão perfeito e ao pensar que amanhã ele será ainda melhor, imagina que a própria natureza o produziu, ignorando todos os esforços pressupostos à sua criação. E como isso se reflete na psicologia do homem-massa? Ortega y Gasset aponta dois traços: a livre expansão dos seus desejos vitais e a ingratidão radical pelo que tornou possível a sua fácil existência. Esta é, diz o autor, a psicologia do menino mimado.


Pergunto então aos meus já fatigados botões: o que faz com que tantos jovens de classe média vociferem contra a Igreja no recente episódio de Alagoinha? A maior parte nem mesmo é católica. Estariam eles tão seguros de que um feto não é um ser humano? Saberiam eles dos reais riscos que a menina de 9 anos corria devido à gravidez? Meus botões, é certo, consideram minhas perguntas indiscretas e sem qualquer cabimento, não vendo nenhuma relação entre a psicologia que motiva esses jovens e aquela própria ao homem-massa. E tem mais, dizem-me meus botões, os jovens que vociferam contra a posição da Igreja não são meninos mimados, a despeito do que eu queira insinuar. Que fique muito claro, dizem eles, não há qualquer relação entre um menino mimado e um jovem que enxerga num par de fetos um presente incômodo, a que se pode aceitar ou rejeitar, como lhe convier.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A propósito de Foucault

«Como proteger criminosos»? Esse foi o título que deu Mauro Chaves à sua coluna, em 26 de maio de 2007, n’O Estado de S. Paulo. Pois bem, como protegê-los? Segundo o jornalista, uma boa maneira era a Resolução nº 214 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), a qual estabelecia que os aparelhos de fiscalização de excesso de velocidade deveriam estar sempre visíveis e acompanhados de sinalização.


Estranhou-me que um texto na segunda página d’O Estado – espaço, pois, de grande destaque – pudesse ser tão abertamente antiliberal. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, isso demonstre meu desconhecimento do jornal paulista, mas não importa. Fato é que, em sua coluna, Mauro Chaves chamava a medida do Contran de «proteção deslavada aos criminosos», e era quase possível sentir seus tremeliques de gozo ao imaginar uma época em que todas as estradas e ruas das cidades tivessem a cobertura de radares. Se hoje isso não era possível, dizia ele, então que os escassos radares fossem instalados sem qualquer sinalização, para que os criminosos do volante nunca soubessem se estavam ou não sendo vigiados. Levado às últimas conseqüências, o argumento defendido por Chaves era o de que só têm a temer a vigilância aqueles que não seguem as regras; quem não deve, não teme.


Como bem escreveu Joel a respeito da recente lei seca (aqui), leis podem ter bons objetivos e ser eficazes ao atingi-los, mas isso não faz delas boas leis. Se a tecnologia permitisse a vigilância absoluta e irrestrita da vida humana com vistas ao combate ao crime – por favor, nada disso ocorre hoje –, e uma lei autorizasse tal vigilância, ela não seria boa, a despeito de sua eficácia e boas intenções.


Dois parágrafos atrás, escrevi que a postura adotada por Mauro Chaves era antiliberal. Será mesmo? Será que a vigilância a que estamos sujeitos hoje é um efeito colateral, um «erro de percurso» de nossas democracias liberais? Ou, ao contrário, não seria ela a parte obscura do processo de consolidação dessas democracias? Esta última opção é, evidentemente, a preferida por gente que perlustrou Vigiar e Punir e adora afetar um ar fatalista quando fala de nossa época. «Sim, a modalidade panóptica do poder é o lastro da sociedade moderna», diz o universitário blasé e drogadicto.


Foucault é um autor que desperta ressalvas às esquerdas e às direitas. Há quem o considere um reacionário antiiluminista – temos, desse lado, retardados do porte de um Noam Chomsky e um David Graeber – e quem esteja convicto de suas posições libertárias e esquerdistas – como a dupla afásica Negri e Hardt.


Eu não sei. Li alguma coisa de Foucault, levado, como tantos outros, pela influência de professores empanturrados de biopoder e mecanismos disciplinares. A julgar pelo que li, aproximá-lo de idéias conservadoras é uma estupidez e, soit dit en passant, tal aproximação ofenderia tanto ele como os conservadores.


A visão sombria de Vigiar e Punir, que, se não é a de um progressismo barato, não é tampouco reacionária, deve ser colocada em perspectiva com aquela presente em O Que São as Luzes?, pequeno texto escrito ao fim de sua vida; não é possível, depois de lê-lo, sustentar que Foucault era «contra» o Iluminismo. Partindo do texto homônimo de Kant, ele afirma que a modernidade poderia ser entendida mais como uma atitude do que como um período da história. Apoiando-se em seguida em Baudelaire, Foucault diz que o homem moderno não é aquele que parte para descobrir a si mesmo, seus segredos e sua verdade escondida; ele é aquele que busca inventar-se a si mesmo: «essa modernidade não liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe impõe a tarefa de elaborar a si mesmo». Excetuando-se o fato de que «inventar-se a si mesmo» me parece coisa de viado, argumento com o qual, aliás, o próprio Foucault estaria de acordo, não há uma única vírgula no texto supracitado que negue a modernidade ou o Iluminismo. Pelo contrário.


Não há dúvida de que o filósofo francês recebe muito mais atenção do que deveria. Na seção de filosofia de qualquer livraria, a parte que cabe a Foucault e seus comentadores só perde, talvez, para a que cabe a Platão. Não tenho dúvidas, também, de que pouco ou nada sei de sua obra. Mas sempre, ao ver alguém a lançar brados a favor de mais vigilância, penso se Foucault não teria um pouco de razão. Só um pouquinho.