quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A propósito de Foucault

«Como proteger criminosos»? Esse foi o título que deu Mauro Chaves à sua coluna, em 26 de maio de 2007, n’O Estado de S. Paulo. Pois bem, como protegê-los? Segundo o jornalista, uma boa maneira era a Resolução nº 214 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), a qual estabelecia que os aparelhos de fiscalização de excesso de velocidade deveriam estar sempre visíveis e acompanhados de sinalização.


Estranhou-me que um texto na segunda página d’O Estado – espaço, pois, de grande destaque – pudesse ser tão abertamente antiliberal. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, isso demonstre meu desconhecimento do jornal paulista, mas não importa. Fato é que, em sua coluna, Mauro Chaves chamava a medida do Contran de «proteção deslavada aos criminosos», e era quase possível sentir seus tremeliques de gozo ao imaginar uma época em que todas as estradas e ruas das cidades tivessem a cobertura de radares. Se hoje isso não era possível, dizia ele, então que os escassos radares fossem instalados sem qualquer sinalização, para que os criminosos do volante nunca soubessem se estavam ou não sendo vigiados. Levado às últimas conseqüências, o argumento defendido por Chaves era o de que só têm a temer a vigilância aqueles que não seguem as regras; quem não deve, não teme.


Como bem escreveu Joel a respeito da recente lei seca (aqui), leis podem ter bons objetivos e ser eficazes ao atingi-los, mas isso não faz delas boas leis. Se a tecnologia permitisse a vigilância absoluta e irrestrita da vida humana com vistas ao combate ao crime – por favor, nada disso ocorre hoje –, e uma lei autorizasse tal vigilância, ela não seria boa, a despeito de sua eficácia e boas intenções.


Dois parágrafos atrás, escrevi que a postura adotada por Mauro Chaves era antiliberal. Será mesmo? Será que a vigilância a que estamos sujeitos hoje é um efeito colateral, um «erro de percurso» de nossas democracias liberais? Ou, ao contrário, não seria ela a parte obscura do processo de consolidação dessas democracias? Esta última opção é, evidentemente, a preferida por gente que perlustrou Vigiar e Punir e adora afetar um ar fatalista quando fala de nossa época. «Sim, a modalidade panóptica do poder é o lastro da sociedade moderna», diz o universitário blasé e drogadicto.


Foucault é um autor que desperta ressalvas às esquerdas e às direitas. Há quem o considere um reacionário antiiluminista – temos, desse lado, retardados do porte de um Noam Chomsky e um David Graeber – e quem esteja convicto de suas posições libertárias e esquerdistas – como a dupla afásica Negri e Hardt.


Eu não sei. Li alguma coisa de Foucault, levado, como tantos outros, pela influência de professores empanturrados de biopoder e mecanismos disciplinares. A julgar pelo que li, aproximá-lo de idéias conservadoras é uma estupidez e, soit dit en passant, tal aproximação ofenderia tanto ele como os conservadores.


A visão sombria de Vigiar e Punir, que, se não é a de um progressismo barato, não é tampouco reacionária, deve ser colocada em perspectiva com aquela presente em O Que São as Luzes?, pequeno texto escrito ao fim de sua vida; não é possível, depois de lê-lo, sustentar que Foucault era «contra» o Iluminismo. Partindo do texto homônimo de Kant, ele afirma que a modernidade poderia ser entendida mais como uma atitude do que como um período da história. Apoiando-se em seguida em Baudelaire, Foucault diz que o homem moderno não é aquele que parte para descobrir a si mesmo, seus segredos e sua verdade escondida; ele é aquele que busca inventar-se a si mesmo: «essa modernidade não liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe impõe a tarefa de elaborar a si mesmo». Excetuando-se o fato de que «inventar-se a si mesmo» me parece coisa de viado, argumento com o qual, aliás, o próprio Foucault estaria de acordo, não há uma única vírgula no texto supracitado que negue a modernidade ou o Iluminismo. Pelo contrário.


Não há dúvida de que o filósofo francês recebe muito mais atenção do que deveria. Na seção de filosofia de qualquer livraria, a parte que cabe a Foucault e seus comentadores só perde, talvez, para a que cabe a Platão. Não tenho dúvidas, também, de que pouco ou nada sei de sua obra. Mas sempre, ao ver alguém a lançar brados a favor de mais vigilância, penso se Foucault não teria um pouco de razão. Só um pouquinho.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A avarícia

Eugénie Grandet, quinto tomo dos Études de moeurs au XIX siècle, foi escrito por Balzac em 1833. A primeira menção ao projeto e ao título, em suas correspondências, data de 15 de agosto do mesmo ano. O começo do texto é publicado no periódico L’Europe Littéraire a 19 de setembro; um mês depois, Balzac afirma em carta a madame Hanska que o romance já está na metade; segundo Samuel de Sacy, a redação e correção dos manuscritos teria terminado ao início de dezembro, sendo o livro publicado algumas semanas depois, durante o Natal.


Ainda que o romance leve o título de Eugénie Grandet, difícil é não se levar pela idéia de que é seu pai, o velho Grandet, a personagem principal. Ao longo da narrativa, acompanha-se a transformação de ambos: a filha, descobrindo o amor por seu primo, deixa de seguir cegamente as ordens paternas e oferece todo seu ouro ao amado; o segundo, até então um pai de família rígido e poderoso, é tomado pelo demônio da avarícia e, pode-se dizer, enlouquece de amor pelo ouro.


É importante atentar para a história do pai e sua transformação. Em 1789, o viticultor Grandet já gozava de posição confortável. Quando a República colocou os bens do clero à venda, Grandet acabava de esposar a filha de um rico comerciante. Munido de sua própria fortuna e do dote, ele se apropriou – quando não legitimamente, ao menos legalmente – dos mais belos vinhedos de Saumur, de uma abadia e de algumas fazendas. Passando por republicano e patriota aos olhos dos habitantes locais, seu prestígio o conduziu à prefeitura de Saumur, cargo do qual foi destituído por Napoleão. Grandet, enfim, soube aproveitar bem seus capitais e as oportunidades que se lhe mostraram, e, economizando tudo, «mesmo o movimento», tornou-se o homem mais poderoso da região.


A avareza não o domina por completo no início do romance – ou, ao menos, a dominação não é desvelada em seu todo pelo narrador. O zelo extremo que dedica aos negócios e a satisfação que deles usufrui não parecem de todo condenáveis, porquanto não têm como fim a fruição dos prazeres materiais, pelo contrário: ao sermos convidados à casa da família Grandet, deparamo-nos com a austeridade que lá domina. Nada de luxos ou excessos. O que parece dominar Grandet é tanto o envaidecimento pelas próprias posses como o encanto pelo poder que elas lhe dão.


O avarento tem apego excessivo às riquezas. Sua vida se apóia em dois sentimentos: o amor-próprio e o interesse, o segundo se originando do primeiro e os dois, por sua vez, constituindo diferentes partes do mesmo egoísmo. Grandet decerto era um avaro, mas é apenas quando sua filha, apaixonada pelo primo, dá-lhe todo seu ouro, que o deslumbramento de Grandet pela riqueza (ou pelo ouro mesmo) se torna maior do que aquele que tinha pelo poder proveniente da riqueza.


Em Balzac, personagens como Grandet povoam a província francesa do século XIX, e a situação em Paris não é melhor. O ódio intenso que ele dedicou à burguesia não era, segundo Carpeaux, senão conseqüência de sua atitude ideológica: era monarquista, admirador da antiga aristocracia e católico conservador. Se essa atitude não está toda presente em Eugénie Grandet, há no romance, porém, um olhar agudo sobre a avarícia, vista de maneira melancólica como uma realidade cada vez mais inelutável. Que o atestem as palavras do narrador:


«Os avaros não acreditam em uma vida além, o presente é tudo para eles. Esta reflexão projeta uma terrível luz sobre a época atual, onde, mais que em nenhuma outra, o dinheiro domina as leis, a política e os modos. Instituições, livros, homens e doutrinas, tudo conspira a minar a crença numa vida futura sobre a qual o edifício social se apoiou por mil e oitocentos anos. Agora, o caixão é uma transição pouco temida. O futuro, que nos esperava além do réquiem, foi transposto para o presente. Chegar per fas et nefas [por todos os meios, lícitos e ilícitos] ao paraíso terrestre do luxo e dos gozos vaidosos, petrificar seu coração e macerar o corpo em vista de possessões passageiras, como outrora sofríamos o martírio da vida em vista dos bens eternos, este é o pensamento geral!»