sexta-feira, 29 de maio de 2009

Millennium


De tempos em tempos, somos confrontados com a atroz presença do Mal. O que fazer diante dele? Como compreendê-lo? Seria ele a disfunção essencial do ser humano? Proviria ele do homem ou, ao contrário, ser-lhe-ia anterior? A um católico, a questão pode ser colocada da seguinte forma: se Deus é todo-poderoso e providente, por que existe o Mal? A Igreja responde: Deus não permitiria o mal se do mesmo mal não tirasse o bem.


Para religiosos e agnósticos, no entanto, quais sejam as respostas que dêem às perguntas acima, fato é que o Mal parece, por vezes, dotado de uma dimensão própria. É difícil concordar que se trata, pura e simplesmente, da ausência do bem. Ora, se não bastasse a vida cotidiana, que lembra aos mais afortunados a presença do Mal por jornais e noticiários, eis que uma série de TV faz questão de esfregá-lo em nossa cara. Trata-se de Millennium, de Chris Carter, mesmo criador de Arquivo X.


Ao ouvir comparações entre as duas séries, é provável ouvirmos que a primeira trata de questões sobrenaturais – OVNIs, vampiros, lobisomens e monstros em geral –, ao passo que à segunda resta, apenas, os mistérios naturais. Ora bem. Isso seria negar qualquer dimensão sobrenatural ao Mal, tal qual o vemos em nossas vidas. Em verdade, creio ser, dentre as duas, Millennium a que mais nos convida a refletir sobre o mundo sobrenatural. Digamos ser pouco provável que você encontre um alienígena em algum momento da vida. Já um pai de família insuspeito, que estuprou e engravidou as filhas e, pasmem, ainda criou seus filhos-netos, isso você pode encontrar – e, se lê os jornais, já encontrou, basta lembrar do amável Joseph Fritzl. Este exemplo compõe a trama de um dos episódios da primeira temporada de Millennium. A diferença é que, na história real, escândalo recente nos jornais de todo o mundo, o pai de família guardava a filha estuprada e os filhos-netos num porão. O Mal na vida real é mais atroz do que o que vemos em tevê.


Millennium nos conta a história de Frank Black, ex-agente do FBI especialista em crimes hediondos. Após décadas de trabalho a tentar pensar como os criminosos, Black logrou bela vitória. Sua mente desenvolveu a capacidade de ver como eles vêem. Some-se a isso um vasto conhecimento do modus operandi de um assassino, e voilà, eis um grande investigador. Desde que se ausentou da polícia federal, Black passou a trabalhar com o Millennium, misterioso grupo de ex-agentes que presta «consultoria» às polícias locais. Entre os monstros que Black e o Millennium investigam – todos bem reais –, encontram-se muitos justiceiros, assassinos que crêem estar purificando a humanidade de seus pecadores. Alguns são religiosos, outros descrentes no sistema judiciário, e há os que são loucos mesmo.


A série fornece terror e suspense de bom gosto, sem apelação. Na realidade, se alguma crítica pode ser feita neste aspecto, deve tomar o sentido oposto. Millennium é a série de tevê mais anticomercial que já vi em minha vida. E, sim, eu já vi muitas. Esqueça perseguições de carros. Esqueça mulheres lindas pouco agasalhadas – há uma mulher linda, a esposa de Black, mas ela está sempre vestida. Tampouco vemos as personagens em festas ou confraternizações. Não há, enfim, aquele momento do seriado no qual o romance – ou a sua possibilidade – surge entre as personagens. Não. Há apenas o Mal. De um lado, o Mal superlativo personificado em assassinos, e, de outro, meia dúzia de homens bons tentando contê-lo.


No cômputo geral, minha avaliação é muito positiva. Tenho, é claro, algumas críticas. Há algumas questões interessantes que o seriado não explora. Em primeiro lugar, a relação entre Black e sua esposa. É de se supor que haja brigas entre o casal. Se até quando o esposo tem profissão normal, como mecânico ou publicitário, a mulher reclama e lhe cobra, o que dizer de alguém cujo trabalho é absolutamente irregular, arriscado e desgastante? «Querido, como foi o trabalho hoje? ─ Ah, corriqueiro, o assassino serial que eu prendi só esquartejava as crianças, não era como o último que as estuprava antes e depois comia suas vísceras». Como eu disse, é de se supor pelo menos uma briguinha.


Em segundo lugar, o seriado não explora a relação entre o grupo Millennium e as forças do Estado. Imagino que policiais não se sentiriam muito à vontade com um grupo privado que, a despeito de ser composto por ex-agentes, faz o serviço dos próprios policiais muito melhor do que eles mesmos. É de se supor invejas e desentendimentos, para dizer o mínimo. Em terceiro e último lugar, o seriado não deixa claro como o grupo Millennium paga suas contas. Acaso é trabalho voluntário? E, se não, quem os contrata?


Somados os prós e os contras, a sugestão permanece de pé. Compre a primeira temporada de Millennium e assista uma grande série, recheada de suspense e muita, muita presença do Mal. O risco é, depois, você querer se tornar policial ou se converter a alguma religião. Mas, contra qualquer uma das duas opções, a covardia costuma vencer.


(Mais informações: Arquivo Confidencial)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Teoria e ciência políticas

Se é possível falar de continuidade e distinção na ciência política hoje, nem por isso é possível desconhecer a profunda tensão na articulação entre as diferentes aproximações dentro da disciplina. Essa tensão se mostra sobretudo na clivagem entre ciência política (ou teoria empírica) de um lado e teoria ou filosofia políticas de outro, e revela diferentes aproximações método e epistemológicas. Não raro, teoria e filosofia políticas são referidas como «teoria normativa» como uma forma de distinguir suas preocupações e valores da «teoria empírica», isto é, a ciência política propriamente dita. Essa distinção se acentuou em uma época na qual as agendas behavioristas moldaram as fronteiras disciplinares e refletem a influência de visões neo-positivistas. Acusa-se a pesquisa em teoria política de que não há parâmetros para julgar seus resultados e de que eles não trazem nada de novo. Enfim, teoria e filosofia políticas seriam vistas como distintas da ciência política empírica – algo com o que autores de ambos os lados concordam.


Para Andrew Vincent, em The Nature of Political Theory (2004), filosofia e teoria políticas são vistas por seus adeptos como uma empresa universal e eterna, que busca os fins da existência social, tentando prescrever como deveríamos atingi-los. Para tanto, utilizam suposições sobre a natureza humana e estabelecem como essa suposições podem ser desenvolvidas e satisfeitas em estruturas políticas. Vincent critica os que assim pensam: para ele, é problemática a construção de uma tradição da teoria política que remonta aos gregos e vem até nós. A própria noção de «teoria política» e a prática do teórico político, a despeito de serem comuns hoje, só se tornaram lugares-comuns na metade do século XX. A teoria política, enquanto disciplina acadêmica, é um produto do século XX. É, pois, compreensível (mas não de todo convincente) que ela queira criar um passado para si própria. Vincent nota, por fim, que aqueles que defendem a teoria política e a enxergam como um contínuo diálogo que remonta aos gregos se colocam, curiosamente, como participantes do dito diálogo. Em outras palavras, os autores que enxergam a teoria política como uma grande tradição se enxergam a si próprios como parte dela – ele cita, entre outros, Arendt, Strauss e Voegelin.


O balanço parece ser negativo para a teoria e filosofia políticas. Suas pesquisas não trazem nada de novo, não podem ser julgadas de maneira adequada e seus maiores representantes crêem – coitados! – dialogar com Platão e Aristóteles. É claro que o esboço da situação, apresentado desta forma, é caricatural. Para começar, acho que a maior parte dos cientistas políticos que fazem pesquisa empírica reconhecem a importância da teoria. Seja como for, é possível encontrar defesas da teoria política normativa honestas e razoáveis.


Em seu pequeno artigo Political Theory, Political Science, and Politics (2002), Ruth Grant faz uma dessas defesas. Ela parte de uma constatação: a teoria política permanece obstinadamente filosófica. Tomemos, pois, a premissa daqueles cuja queixa é que a teoria política não pertence a uma disciplina devotada ao estudo científico e sistemático do fenômeno político, já que o conhecimento adquirido pela pesquisa em teoria política não pode ser validado ou falseado.


Grant responde tal objeção de três formas. (1) A primeira é aceitá-la nalguns aspectos: não há necessidade de defender a pesquisa em teoria política porque sua missão essencial não é a pesquisa, mas a educação. Na teoria política (e ciências humanas em geral), a atividade de ensinar e a de pesquisar são quase idênticas. (2) A segunda é argumentar que tanto as ciências «duras» como as ciências sociais são, na realidade, mais moles do que parecem. Há, é certo, descoberta de novos fatos, mas os grandes avanços na ciência são freqüentemente avanços de interpretação, que nos permitem explicar – de forma mais coerente – um grupo de fatos já conhecidos. (3) A terceira é reconhecer o caráter distintivo da pesquisa em ciências humanas em geral. Para Grant, os teóricos políticos desejam tornar mais claras questões sobre as quais o entendimento humano não pode ser certo e completo.


Uma das preocupações da teoria política seria a do julgamento. Para Grant, julgamentos podem ser refinados e melhorados. Parece difícil a algumas pessoas concordar com isso, de vez que mesmo julgamentos morais são tratados como questões de gosto individual. Mas que as pessoas discordam é coisa que se sabe há muito tempo; isso não precisa nos levar à conclusão epistemológica de que o julgamento moral é impossível.


Grant continua e afirma que, devido a seus métodos interpretativos e históricos, a pesquisa em ciências humanas é conservadora. É conservadora no sentido óbvio de que depende da conservação do passado, dos registros do pensamento e da ação humanas. Mas também o é em sentido menos evidente. Estudar os produtos do pensamento e imaginação humanos durante a história produz, é claro, uma apreciação da imensidade das conquistas humanas. Porém, produz também um reconhecimento dos limites da compreensão humana e de suas capacidades. Torna-se aparente a idéia de que não há nada de novo sob o sol, e, para Grant, esta idéia limita o impulso do utopismo científico – assim como o limita o conhecimento histórico em geral. (Eu não hesitaria em somar ao científico o utopismo político.)


O artigo de Grant faz uma defesa interessante da pesquisa em teoria política e seu caráter distintivo. Os parâmetros para julgá-la não são, por certo, os mesmos utilizados na pesquisa empírica. Mas eles existem. É importante que teóricos políticos reconheçam a validade das pesquisas empíricas, assim como é importante que cientistas políticos reconheçam a necessidade da pesquisa em teoria política. Se não por outras razões, basta dizer que a convivência assim o exige: em 2002, nos EUA, 81% dos teóricos políticos faziam parte de departamentos de ciência política.