quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A USP, as ocupações e o golpe

Sendo estudante da pós-graduação da USP, imagino o que aconteceria se, nos corredores de minha faculdade, algum desconhecido me interpelasse a respeito da recente «crise» na universidade. Alguém que desconheça o início da «crise», mas que, de repente, seja informado sobre todas as manifestações do movimento estudantil ocorridas desde o dia 27 de outubro, certamente pensará que foram necessários atos muito vis para provocar tamanha indignação. «Como assim?», perguntará o sujeito a seus botões. Estudantes se revoltaram contra a polícia militar? Ocuparam o prédio da Administração da FFLCH? Ocuparam o prédio da reitoria? Os estudantes declararam greve geral? Fizeram piquetes na entrada do prédio da Letras e, depois, retiraram as cadeiras das salas do prédio de Ciências Sociais e Filosofia? Mobilizaram-se em assembléias com mais de 2 mil alunos? Divulgaram abaixo-assinados a veículos de imprensa? Exigem que a polícia militar saia imediatamente do campus? Exigem a saída do reitor da universidade? Adiaram as eleições do DCE para o ano que vem?

O indivíduo que desconhece o que se passa na USP, e acaba de ser informado a respeito das mobilizações estudantis, certamente pensará que algo de muito grave aconteceu. Protestos tão inflamados não podem surgir sem uma causa significativa. Curioso, esse indivíduo aventará algumas possibilidades. Talvez a PM tenha agido de modo arbitrário e truculento, como lhe é comum, causando assim a indignação dos estudantes. Talvez o reitor tenha tomado alguma medida polêmica, flagrantemente contrária ao estatuto da universidade. Talvez haja grupos fascistas de extrema-direita perseguindo minorias dentro do campus. Talvez as três coisas juntas.

Imagino qual seria a reação desse indivíduo se eu lhe dissesse que nada disso aconteceu. «Ah, como assim?», dirá, exaltando-se. «Você está querendo me dizer que todos esses protestos enfurecidos estão ocorrendo sem nenhuma causa?» Não exatamente. Não iria tão longe a ponto de negar o princípio de causalidade. É evidente que, se esses protestos ocorrem, têm alguma causa. O que quero dizer é simplesmente que a causa não pode ser apreendida a partir dos protestos, e que, a despeito das ações do movimento estudantil sucedidas desde o dia 27 de outubro, nem a PM, nem o reitor violaram os direitos ou liberdades básicas de quem quer que fosse. A PM cometeu uma ilegalidade, qual seja, a não identificação dos policiais no momento da desocupação. Quanto aos grupos fascistas, se existem, são uma reação às ações extremadas do movimento estudantil, e não o contrário (basta ver isso aqui). «Ora, então você está afirmando que os estudantes começaram protestos radicais sem razão para fazê-lo?» Sim, é o que estou afirmando.

É preciso fazer três esclarecimentos. Em primeiro lugar, (1) os principais responsáveis pelos atos ilegítimos de ocupação dos dois prédios, piquetes, cadeiraços e atos afins são estudantes radicais ligados a partidos extremistas. Esses estudantes não representam a maioria dos estudantes da USP. Possivelmente, não representam nem suas famílias. Em segundo lugar, (2) a afirmação de que as referidas manifestações radicais do movimento estudantil são «ilegítimas» não implica em uma condenação a toda e qualquer manifestação radical. Não estou, portanto, dizendo que a contestação fora dos limites institucionais seja, por si só, ilegítima (devo este esclarecimento ao Lucas e Renato). Pelo contrário, em muitos casos ela é fundamental. Em uma democracia, diversos direitos são adquiridos graças à luta de movimentos atuando no limiar da lei. No entanto, as manifestações que se sucederam a partir do dia 27 de outubro, notadamente as ocupações, os piquetes e o cadeiraço, são, sob quaisquer pontos de vista, ilegítimas. São atos autoritários, que atentam contra os direitos de outrem e não são apoiados nem pela maioria dos estudantes, nem pela instituição que, supostamente, representa-os, o DCE. Além de tudo isso, suas reivindicações são vagas e mudam constantemente.

Em terceiro lugar, (3) embora seja difícil julgar a conduta da polícia militar, afirmo que, desde o dia 27 de outubro até hoje, ela agiu de modo não-condenável, o que é diferente de dizer que a PM agiu de modo «irrepreensível» ou «totalmente aprovável». No dia da desocupação da reitoria, os policiais militares da tropa de choque não estavam identificados. Trata-se de uma infração à lei, que exige que os policiais atuem identificados. Além dessa infração, é possível que, desde o dia 27 de outubro, a PM tenha cometido outras. Talvez, sei lá, algum policial tenha xingado um estudante. Mas, convenhamos, nada remotamente próximo ao que a radicalidade das manifestações estudantis levaria a crer. A polícia militar não violou a integridade física de ninguém, nem no dia 27, quando enfrentou manifestantes após autuar três jovens fumando maconha, nem no dia da desocupação. E a prova disso está nos testemunhos do movimento estudantil, cuja ojeriza à polícia militar é notória. Pois bem, mesmo com todo esse asco, mesmo com toda a vontade de denunciar abusos da PM, não houve nada a ser denunciado. Nada, a não ser a falta de identificação dos policiais durante a desocupação e o fato de terem sido lançadas duas bombas de gás próximas ao CRUSP. Nenhuma violência minimamente comparável àquelas perpetradas pelo movimento estudantil.

E não é só isso. As reivindicações da minoria estudantil radicalizada, sobretudo as que exigem o fim do convênio entre a USP e a PM, a que exige o fim de todos os processos administrativos contra estudantes, e a que pede a renúncia do reitor João Grandino Rodas, carecem de fundamento. Não estou afirmando que sejam reivindicações absurdas (embora, sim, pareçam-me absurdas), mas apenas que, até agora, nenhum dos representantes da minoria radicalizada foi capaz de argumentar consistentemente a favor delas.

É possível que alguns leitores permaneçam incrédulos diante do que estão lendo neste texto. «Como assim? As ações do movimento estudantil se explicam porque o reitor Rodas é um fascista! Ele agiu de modo unilateral e ignorou os canais pelos quais a comunidade acadêmica pode participar das decisões da instituição!» De fato, esta é uma das principais alegações dos estudantes que apóiam os atos extremistas (vejam, por exemplo, esta Nota Pública). Mas teria ela fundamentos? Seria o reitor um fascista?

No fim de 2009, o então governador José Serra deveria escolher um candidato da lista tríplice eleita pela comunidade da USP para ser o reitor da universidade. Ressalte-se, que, desde o fim da ditadura militar, os governadores têm escolhido sempre o primeiro da lista eleita pela comunidade, ou seja, o nome por ela preferido. E o que Serra fez? Ele escolheu Rodas, o segundo da lista. Seria este ato ilegítimo? Não, ao menos do ponto de vista legal. O governador tem a prerrogativa de escolher qualquer um dos três nomes da lista tríplice. Não tenho nenhuma simpatia por Rodas, mas não é nada evidente que sua escolha seja ilegítima, muito menos o são as razões pelas quais ele deveria renunciar.

Mas os estudantes que defendem os atos radicais e extremos ainda poderiam afirmar que não foi propriamente a eleição de Rodas, e sim sua forma de governar que o torna um reitor ilegítimo. Sobre este ponto, não vou me estender muito, pois acho que uma pequena reflexão é suficiente. Por mais desgosto que nos causem as ações do reitor, elas são tão ou menos arbitrárias do que aquelas realizadas pelo movimento estudantil. Quer dizer, qual é a legitimidade das ações do movimento estudantil? O fato de que elas são debatidas em assembléias? Ora, essas assembléias reúnem em torno de 2% dos estudantes da USP, o que significa que as maiorias formadas devem representar pouco mais de 1% deles. Não obstante, os métodos de votação são no mínimo questionáveis; a minoria radicalizada – que, nas assembléias, torna-se maioria – intimida possíveis manifestações divergentes; e não há qualquer controle sobre se os presentes são de fato estudantes. Não bastasse tudo isso, deliberações tais como a ocupação de prédios, piquetes e cadeiraços são flagrantemente truculentas e autoritárias. Isso para não falar no recente adiamento das eleições do DCE (ver aqui), fato que, se fosse contrário aos interesses da minoria radicalizada, certamente seria por ela caracterizado pelo que de fato é, a saber, um ‘golpe’.