sábado, 10 de agosto de 2013

"Se Deus não existe, tudo é permitido"?

O título deste post é a famosa frase de Ivan Karamázov. Na verdade, ele não a formulou desse jeito, mas essa é a formulação que a tornou famosa: "se Deus não existe, tudo é permitido". Evidentemente, essa ideia não surgiu com Dostoiévski. De forma um pouco diferente, ela está contida na também famosa afirmação de São Paulo: "Se foi por intenção humana que combati em Éfeso, que me aproveita isso? Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos" (I Cor 15, 32). Como disse, não é bem a mesma coisa, mas tem bastante a ver. E a ideia é certamente mais velha que São Paulo, mas isso não importa.

Recentemente, Julio Lemos escreveu um texto interessante no blogue da Dicta. Antes de mais nada, deixo claro que Julio é um grande amigo e, apesar de possíveis divergências, respeito suas posições nesta discussão. Esclareço, também, que sou mais cientista social do que filósofo. É possível que não use os termos corretos e faça algumas simplificações grosseiras. Mas acredito que, apesar disso, vale a pena sintetizar alguns pontos que considero importantes. Meu objetivo é apenas apresentar alguns argumentos em defesa da ideia de que, "se Deus não existe, tudo é permitido".

O debate sobre a secularização é difícil e está sempre em progresso. Sem tomar posição em qualquer um dos lados, é possível dizer que, a despeito do declínio da frequência ao culto religioso em alguns países, as teorias "clássicas" da secularização vêm sofrendo críticas consideráveis. Se não por outros trabalhos, valeria a pena citar, como exemplos de compreensões mais razoáveis da secularização, A Secular Age, de Taylor; Fé e Saber, de Habermas (recentemente publicado pela Editora Unesp); e Public Religions in the Modern World, de Casanova. No que se refere a testes empíricos das previsões das teorias da secularização, o trabalho mais recente que li foi "Is it Really God's Century? An Evaluation of Religious Support and Discrimination from 1990 to 2008" (2013), de Jonathan Fox. Os achados de Fox contradizem as previsões de declínio religioso no período estudado (sua principal variável dependente é o apoio dos governos à religião).

Qualquer que seja nossa opinião sobre tendências de secularização, parece seguro afirmar que religiões terão um importante papel público no médio e longo prazo. Isso significa que cidadãos religiosos e não religiosos terão de aprender a conviver e a respeitar os fundamentos que uns e outros empregam como justificativa para seus atos.

Acho que Julio concordaria comigo até aqui. No entanto, uma das primeiras ideias que defende em seu texto é a de que "assentar a moralidade sobre proposições religiosas não é apenas um erro filosófico, mas um ato irresponsável". Se entendi o que ele quis dizer, concordo em parte. É claro que, nas atuais democracias liberais, não podemos exigir de cidadãos que assentem sua moral prática sobre um fundamento específico qualquer, seja ou não religioso. Aliás, não podemos exigir nem que cidadãos saibam explicar quais são os fundamentos de sua conduta moral. Se um cidadão de uma democracia liberal segue a lei, isso é o bastante, não importando por que ele a segue. Porém, isso não significa que eu - ou qualquer indivíduo em uma democracia - tenha de aceitar todos os fundamentos da moralidade como iguais, e, mais ainda, isso não significa que não haja uma fundamentação da moral superior às outras (não estou dizendo que há, mas que poderia haver).

Minha discordância com a frase de Julio descrita acima se dá por ele entender que "a crença ou descrença nesse fundamento [ou em qualquer fundamento para a moral], não afeta a nossa existência, e portanto, não afeta a substância de nossos atos". Então, mais uma vez: é evidente que cidadãos não podem ser obrigados a assentar sua moral em tal ou qual fundamento. Eles nem mesmo precisam saber expressar qual é esse fundamento. Como Julio disse em outro comentário, as pessoas sabem (em alguma medida) o que é certo e errado sem ter de recorrer a filosofias de ética. Tudo bem. Mas isso não tem relação necessária com a ideia de que "a crença ou descrença nesse [ou em qualquer] fundamento não afeta a nossa existência", nem a "substância de nossos atos". Parece-me claro que a crença em tal ou qual fundamento afeta, sim, nossa existência e nossos atos.

A convivência em democracias liberais - marcadas pelo "fato do pluralismo razoável" - exige dos cidadãos a disposição de lidar com justificações da moral diferentes das que eles mesmos esposam. Há um grande debate na teoria política contemporânea sobre essa questão, mas cito apenas dois exemplos de possíveis "respostas": a ideia de razão pública de John Rawls e o ideal de engajamento consciente, de Christopher Eberle. Se assumirmos a expectativa de que as religiões manterão sua vitalidade no futuro (ou, simplesmente, de que o pluralismo será uma constante nas sociedades humanas), é de suma importância que se chegue a algum tipo de concepção de justificação pública. No entanto, creio que buscar tal concepção não equivale a dar um fundamento para a moral que prescinda de crenças. São coisas diferentes. É justamente porque não podemos chegar a esse fundamento que precisamos de uma concepção de justificação pública que "acomode" os diferentes fundamentos.

Se todas as fundamentações da moral levassem à mesma moral prática, bastaria convencer os cidadãos de que, "seja você muçulmano, cristão, comunista ou naturalista, tudo vai dar no mesmo". Porém, se compararmos cidadãos esposando diferentes fundamentos da moral, chegaremos a diferentes resultados, mesmo se controlarmos pelo rigor com que seguem seus respectivos preceitos. Como argumentei em um comentário no Facebook, isso ficaria mais claro se comparássemos o que cada doutrina moral tem como seu ideal, aquilo que considera o homem plenamente realizado. Será que não veríamos diferenças entre o santo católico, o awliya muçulmano, o além-do-homem de Nietzsche e o "único" de Stirner? É claro que, para tal comparação, precisaríamos de contrafactuais, de modo a saber como esses indivíduos se comportariam caso não adotassem tal ou qual doutrina, e não sei até que ponto isso seria possível.

Então, acredito que diferentes fundamentações da moral levem a diferentes resultados práticos. E o que isso tem a ver com a ideia de que, "se Deus não existe, tudo é permitido?" Bastante coisa. Suponhamos que "Deus" se refira a algum fundamento metafísico. Não precisa ser o Deus judaico-cristão, senão alguma coisa que não seja redutível à Física. Suponhamos, também, que seja possível pensar em um continuum que vai do extremo teísmo ao extremo ateísmo. Tendo em mente tal continuum, não estou dizendo que (i) "só os indivíduos localizados no extremo teísmo estão justificados a ser bons", nem que (ii) "indivíduos localizados em qualquer ponto que não o extremo teísmo não têm justificativas para ser bons". Não estou afirmando essas duas proposições, mas sim uma terceira: que (iii) "indivíduos localizados no extremo ateísmo não têm justificativa para ser bons".

É claro que se pode objetar: "mas, apesar disso, muitos ateus extremos são bons". Sim, é verdade. Mas, neste ponto, meu argumento seria: esse indivíduo que está localizado no extremo ateísmo do continuum (cujo exemplo, para mim, seria o Alex Rosenberg, para quem TODA realidade é apenas férmions e bósons) não está sendo coerente com a própria crença. Ele diz professá-la, mas não a segue de fato. Porque, se todos os seres humanos ao seu redor são apenas um amontoado de moléculas, não há por que, no limite, respeitar a dignidade deles. Ou, por outra: respeitaríamos a dignidade deles até onde isso nos fosse útil. De modo geral, creio que mesmo o indivíduo para o qual o ateísmo extremo faz parte da própria autocompreensão mantém, ainda que implicitamente, um pressuposto metafísico para justificar valores tais como a inviolabilidade da vida humana.

Se os seres humanos ao nosso redor são apenas amontoados de moléculas, se não há nenhum tipo de fundamento metafísico, então não há por que ser bom. Não há por que não tratar um amontoado de moléculas como... Um amontoado de moléculas, oras. Se há, então é porque, no fundo, no fundo, esse amontoado de moléculas não é apenas um amontoado de moléculas. É alguma coisa a mais do que isso.

Creio que a maior parte dos ateus extremos como Rosenberg não age como se seres humanos fossem apenas "amontoados de moléculas". Isso não contradiz meu argumento, e sim o ateísmo extremo de Rosenberg. Mas, embora esse naturalismo radical - ou qualquer outro tipo de ateísmo extremo - não faça com que seus adeptos declarados ajam por aí negando sistematicamente a dignidade humana, isso não significa que tal crença não tenha consequências práticas. Embora o grau de importância dessas consequências dependa de como elas são avaliadas, elas não podem ser desprezadas. Se não por outros exemplos, basta pensar na eugenia.